A professora e socióloga do Centro de Ciências Humanas e Jurídicas (CCHJ) da Univates Shirlei Mendes da Silva foi selecionada para lecionar durante o ano letivo de 2012 na Universidade Nacional de Timor-Leste (UNTL). Ela envia notícias periódicas das atividades desenvolvidas nesse país.
Confira os recentes relatos:
Do mar à terra, da terra aos povos de Timor-Leste
O mar de Timor tem uma beleza surpreendente. Suas cores se matizam em contrastes magníficos. Há quem fale de Timor referindo-se ao fato de que esta é uma pequena ilha cercada de águas mágicas. Segundo Sarmento (Universidade do Minho, s/d, p. 18), existem dois centros simbólicos em Timor-Leste: um é o extremo oriental da ilha, onde o sol nasce (Lorosa’e) e o outro é o Timor ocidental, a parte oeste da ilha conhecida como a “cabeça da terra”. Aqui se insere o mito do crocodilo (representação do nascimento da ilha), com a sua cabeça para o Este e a cauda apontando para o Ocidente. Este eixo Este-Oeste forma um alinhamento que segue o sol (daí em tétum Este e Oeste se designarem como Lorosae e Loromunu).
Segundo Sarmento (op. cit.), o estabelecimento das duas regiões pode estar ligado com as duas grandes etnias presentes: Mambai a Oeste e Macassai a Leste. Também pode ligar-se às diferentes famílias linguísticas: línguas austronésias, no Oeste e línguas Papuas a Leste. Ou ainda, as duas regiões teriam surgido devido a diferenças étnicas ancestrais: papuas e malaios, ou então a diferentes formações étnicas: Firaku e Kaladi. Isto explicaria algumas das divisões existentes entre os timorenses, divisões que permanecem ora aqui, ora ali, e não se diluem facilmente.
A lenda do crocodilo
A tradição mítica em Timor-Leste é muito forte. Ainda hoje, no interior, a cultura oral se manifesta por meio de mitos e lendas que atravessam os tempos. A lenda do crocodilo faz parte dos mitos de fundação do Estado timorense e pode ser interpretada de formas diferentes. A interpretação que segue é parte do texto de Luís Cardoso, escritor timorense. Cito suas palavras:
“'Foi o tempo em que tudo estava ligado, o universo em gestação. Os seres misturavam-se e percorriam lugares outrora restritos apenas a alguns. A água fizera o que os homens alguma vez ousaram, diluindo as fronteiras terrestres.'
Pode-se deduzir que os mitos fundantes referem-se aos tempos imemoriais, quando 'tudo estava ligado' e as águas diluíam as fronteiras. Ora, sabemos que toda a estrutura do Estado-nação, conceito europeu erguido a partir da Modernidade, se impôs através da manutenção das fronteiras (território), incluindo um povo e um 'príncipe', ou seja, aquele que detém o poder do 'mando'.
Segundo a lenda, no final da estação das chuvas, todos os animais foram para seus nichos. Mas o velho crocodilo recusava-se a abandonar 'aquele canto da terra onde passavam todos os animais, inclusive o homem'…O acaso fez com que ali passasse uma menina em busca dos pais. E vendo o velho crocodilo chorando, perguntou-lhe se precisava de ajuda, ao que o crocodilo respondeu: 'Leva-me até o mar. Prometo entregar-te aos teus pais!”. Como a menina não tinha força para removê-lo, o crocodilo, 'rendido à evidência da morte, quis a grandiosidade. As suas patas alongaram-se e cravaram bem fundo nos corais…'. E o crocodilo falou:
'Sou velho e vou morrer. Tu és linda e habitarás este corpo onde foram enterrados os teus pais. Brevemente chegarão os estrangeiros. Uns príncipes em busca de tua beleza e outros mercadores do sândalo.'
Então o crocodilo deu o último suspiro e o sol nasceu, iluminando a ilha chamada de Timor. Da lenda fica a lição: resulta que o Estado só pode nascer da morte de alguém ou de alguma coisa. A guerra permanece como a condição necessária para o surgimento do Estado, pois, para a criação de novas fronteiras é preciso a diluição ou a morte das velhas estruturas existentes. Assim aconteceu com o moderno Estado-nação no Ocidente. Assim aconteceu com o primeiro Estado-nação do século XXI, Timor-Leste, esta pequena ilha com forma de crocodilo.”
Fonte: Cardoso, Luis. O crocodilo que se fez ilha. Visão, 16 de maio de 2002.
Shirlei Ines Mendes da Silva
de Díli, Timor-Leste